O Silêncio
"Que marinheiro se lança à aventura oceânica sem controlar
se leva na embarcação, não só a vela e os remos, mas também uma âncora? Ou que
caminhante enfrenta a sua jornada sem prever tempos e lugares de pausa, que lhe
garantam a possibilidade de refazer-se, sentir o conforto de um abrigo e
retemperar forças para poder continuar? A viagem não é só movimento, como a
vida não é apenas o contínuo das suas atividades. A arte de parar é uma
aprendizagem indispensável à sobrevivência, mesmo se isso vem frequentemente
esquecido. Quem não sabe parar, não sabe viver, pois há uma qualificação da
existência que provém daí, por muito que isso se tenha tornado difícil de
efetivar ou nos obrigue a deliberar em contraciclo, mesmo em relação às
idealizações que construímos sobre nós próprios. Precisamos de parar: por
carência e necessidade, por chamamento interior e por escolha, por decisão e
sabedoria.
Tendencialmente as nossas vidas têm-se tornado uma espécie de
cidade que não dorme. O tempo parece-nos sempre escasso face ao programa que
nos impomos. Desejaríamos que ele se desdobrasse, como que por magia, e fosse o
que não é. Correndo ofegantes, num dia a dia saturado, não deixamos de
sentir-nos ainda em falta com alguma coisa que muitas vezes não sabemos bem o que
seja, mas que tem a forma de uma culpa que nos mói. A sensação crescente é de
que o mundo nos ultrapassa e a perceção da nossa insuficiência deixa-nos
devorados por dentro, em terra queimada. Por muito que façamos, as metas
mantêm-se longínquas; nada nunca basta; a parte mais íntima de nós sente-se
permanentemente irresoluta, em dívida e em perda.
E isto é assim, para nós, há muitos anos. Para o movimento
tivemos mestres, a escola organizou-nos, a família tutelou de perto a nossa
maturação. A pausa e o recreio foram confiados às regras do acaso, na suposição
de que parar, brincar, repousar são uma ciência inata, coisa que —
compreendemos dolorosamente depois — não é. Esse défice de competência fica em
tantas vidas como um buraco do qual se foge, um vazio colmatado com múltiplas
formas de evasão.
Muitas vezes dizemos que não paramos porque não podemos, pois, o
mundo à nossa volta, o mundo que depende de nós, se bloquearia nesse instante.
Ora, precisamos desconstruir esta ilusão. Os que se creem insubstituíveis
padecem, não raro, de uma vertigem prometaica enganadora. É fundamental
ganharmos um distanciamento crítico em relação ao nosso contributo, valorizando
mais o trabalho de autonomização dos outros do que o tecer uma rede, mais
visível ou impercetível, de dependência. Sem nos darmos conta, por trás de uma
exagerada doação ou de um ativismo irreprimível, está uma insegurança profunda
nos laços que estamos a construir.
Lembro-me que há uns anos, fazendo eu próprio os caminhos de
Santiago, encontrei, logo no meu primeiro dia de peregrinação, uns brasileiros
sentados na berma a tratar dos pés já meio-desfeitos. Eles devem ter-se
apercebido do meu ar apavorado, porque um deles disse-me, com uma tranquilidade
que me animou: “É bom gastar tempo a cuidar das próprias feridas.” Eu ainda não
tinha compreendido que essa era uma das razões principais porque estava ali a
enfrentar aqueles cento e tal quilómetros de estrada.
Mas o mesmo se pode dizer do encontro (ou do desencontro) com os
outros. Só encontramos verdadeiramente aqueles junto dos quais fundeamos a
nossa âncora, empregando o tempo necessário à escuta, à atenção e à surpresa. O
não parar é uma forma de fuga ao encontro mais profundo connosco mesmos e com
os outros."
José Tolentino Mendonça, in
Expresso, 08/07/2017
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